Já acabou há mais de um dia, e
ainda estou a tentar perceber o que lá se passou. Foi uma das experiências mais
confusas e intrigantes por que já passei na minha vida, e continuo a não
perceber se gostei ou não daquilo. Deixo-vos tentar perceber o meu estado de
espírito contando uma pequena história de dia e meio, a história do IV Kerit do Carmo Jovem, este ano com o
tema “busca-O em fé e amor”.
Eu sabia que isto não ia ser um
acampaki, onde o objetivo é conviver em comunidade ao jeito de Jesus e seus
discípulos, mas isso deixava-me também sem saber o que esperar do primeiro retiro
da minha vida. Seria para descansar, arejar um pouco da vida complicada e
trabalhosa? Ou será que me esperava algo mais profundo? Tinha de esperar para
ver.
Começou como é costume nos
encontros de bons leigos carmelitas, com o barulho de carros a chegar
misturando-se no meio de vozes alegres que se cumprimentavam como velhos
amigos. Lá encontrei a Camy e o marido, o Zé, a Ana, a Jana, a Babo, a Costa, a
Jéssica e o Zé Filipe! A sala de convívio do casarão de Avessadas foi preparada
com cuidado utilizando a cruz do movimento, o cajado, as faixas coloridas,
velas e até um pequeno tronco foi integrado na composição. Após as malas serem
arrumadas nos quartos, procedeu-se ao início oficial, com uma oração em conjunto,
belos cânticos e partilha de palavras e emoções. Assim começou, como é costume
nos encontros da gotinha.
Ainda havia tempo, e o dia não
acabou sem a primeira atividade do Kerit, um cheirinho ao tema que nos era
proposto. Logo a seguir às orações, de um texto, de um autor desconhecido, saltavam
frases de conselho sobre como viver a vida duma maneira mais correta, sabendo
sentir cada dia como a dádiva divina que é. Foi um bom primeiro texto, com
palavras simples e sinceras. Após um arranque meio forçado, a partilha começou
a fluir, e juntos criámos uma conversa feita de pensamentos e experiências
pessoais. Assim terminou o primeiro dia, apenas umas horas que já tinham sido
bem aproveitadas. Mas dificilmente estaria eu preparado para o que o dia
seguinte nos reservava.
Sábado! Levantamo-nos bem cedinho.
Depois do pequeno-almoço, a oração, ao sol!
“A Educação da Fé”, de Agustina
Bessa-Luís, foi o mote para os trabalhos do início da manhã, e marcou a
transição do sereno e agradável da noite anterior para o violento e incerto
deste dia. Uma dissertação cheia de conteúdo, que foi aos poucos sendo estudada
pelos entusiasmados carmelitas. Aqueles que têm uma fé forte irradiam-na,
conseguem influenciar outras pessoas e atraí-las um pouco mais para a ideia de
amar Cristo como Ele merece. Santos colocados nas nossas casas para serem
adorados vão gradualmente tornando-se em parte da mobília, perdendo o seu
sentido superior e convertendo-se num puro objeto mundano. Após viva análise e
debate, seguiu-se um poema de Florbela Espanca. Algo ao jeito dela, sofrido mas
verdadeiro. Versos que ainda nos chamaram mais que o texto anterior, cantando
uma mente atormentada por dúvidas, assim como a maioria de nós ocasionalmente
se sente, magoado pela incerteza de algo que não pode ser menos que certo, Deus
existe e trata-nos com um amor único. Um segundo poema, do escritor Machado de
Assis, mostrou-nos uma visão mais séria de Deus, apelando a uma relação mais
próxima com Deus. Ele está sempre lá, nós é que frequentemente falhamos, e para
falar disso também não faltou vontade de comunicar. Uma vez mais, as gotinhas
aproximaram-se num só grupo, e alturas risonhas e momentos mais sérios
sentiram-se ao longo de toda a manhã. Nesta altura, o Kerit estava sendo mais
ou menos aquilo com que eu contara.
Chegava, entretanto, a hora de
almoço! Um manjar aliás!!! Preparado pela mãe do Zé Filipe, a D.ª Amélia. A ela
o nosso muito obrigado!
A tarde trouxe a reviravolta com a chegada do Frei
João.
A palavra de ordem passou a ser
“escaqueirar”. Uma breve ilustração envolvendo um prato serviu para nos mostrar
o objetivo que Frei João nos propunha para aquele retiro, desmontarmo-nos
completamente e voltarmos a ligar os cacos em algo melhor que antes. Tenho de
admitir que esta parte foi um pouco confusa, mas tentarei relatar-vos na mesma
a experiência conturbada.
Uma citação de C S Lewis
levou-nos a discutir o porquê de se considerar o cristianismo como uma religião
que não pode ser chamada de confortável. Porque Jesus se dava com uma
prostituta e porque Jesus não aceitava todo o discípulo mas só os que estavam
prontos para ele e por muitas outras razões, vimos que saber ser cristão é algo
mesmo muito difícil. O texto que se seguiu, um evangelho relatando um encontro
entre Cristo e Nicodemos, confirmou-nos a dura realidade do Cristianismo, um
homem sábio que foi completamente desarmado e até gozado por Jesus.
De tanta prova à nossa
religiosidade, já o ambiente estava cansativo e pesado, e Frei João sugeriu que
nos juntássemos aos pares e dois a dois reflectíssemos sobre as milhentas ideias
que nos correram pelas cabeças durante a tarde. A minha parceira foi a Jana, e
com ela tive uma hora de conversa bem agradável. Espero que o resto do pessoal
tenha tido o mesmo prazer no seu diálogo, porque saídos de três horas de
profunda reflexão, nada sabe melhor que arejar a cabeça em bom lugar e com boa
companhia.
Com o fim da tarde, veio o
jantar, com o alto patrocínio do intermarché local. Obrigado também a esta
dádiva! A noite trouxe a visita dos amigos do Carmo Jovem, o Duarte e o
Francisco, representantes do grupo de Paços de Gaiolo. Enquanto as gotinhas
arrumavam a casa, estes amigos preparavam, juntamente com a coordenadora Ana, a
próxima atividade, a carminhada entre Avessadas e Tongóbriga que será a 23 de
Março. E só vieram estes amigos porque os jovens de Paços repousavam para a
competição desportiva do dia seguinte! Mas já se comprometeram a participar na
carminhada! Ao Duarte e ao Francisco, não lhes faltou a força da gotinha do
Carmo, e assim acompanharam-nos na adoração que se seguiu. O momento mais
solene de todo o Kerit, a adoração foi conduzida, humildemente, pela equipa
coordenadora, na capela do Convento de Avessadas, e entre orações e canções
festejámos, na verdade, a existência de um Kerit e do Carmo Jovem. Por fim o
Frei João encerrou a adoração, e com isso encerrou um dos momentos mais
importantes do retiro.
O dia seguinte, Domingo, foi
feito de oração, seguida de uma normal missa (mas da qual devo dar os meus
parabéns ao coro, que cantou muito bem). Ao fim da missa, almoçou-se e aos
poucos, as várias gotinhas foram escorrendo do Convento de Avessadas e pingando
por cima do imenso prado que é o mundo. Assim terminou o IV Kerit, uma
experiência de que ainda não sei se gostei ou não, mas que garanto que quando
houver outro, não hesitarei em voltar a tal desafio. Pelo escaqueiro!
A gotinha, João Sequeira